«Desde
1918 para cá tudo mudou: os homens, os usos e costumes. 1918 marca o começo de
um novo ciclo na história da humanidade. Passados muitos séculos o mundo falará
ainda desta espantosa revolução que tudo subverteu»
Cap. Vicente Leonardo José da Silva
Normalmente quando falamos da devoção a
Nossa Senhora da Agonia, dificilmente a podemos desassociar do culto à Nossa
Senhora das Boas Novas. Há um certo paralelismo entre estas duas romarias,
tendo em conta o conceito espiritual envolvente das nossas gentes, face à
temeridade a Deus e forma de intercederem junto dos Santos, com o “objectivo
íntimo” de até Ele chegarem, honrando-os, sobretudo os da sua particular
devoção. Sem dúvida que, dentre eles, sobressaem a Virgem Nossa Senhora,
invocada de diversas formas. Há gente que ainda se lembra de à Capela de Nossa
Senhora das Boas Novas[1] –
cujo ícone se revela da seguinte forma: coroada, manto azul (cor do mar) e
tendo uma caravela dourada na mão – acorrerem, em maior número, devotos da
Ribeira citadina e familiares de emigrantes. Daí, depois do apelo à Senhora da
Agonia, se ouvir a acção de graças à Senhora das Boas Novas: «Senhora das Boas Novas, / Tem um manto de
ouro fino, / Que lhe deu um marinheiro, / Que se viu no mar sem tino.»,
testemunho oral que muitas vezes se ouvia da boca de um dos grandes vultos da
milenar freguesia de S. Simão da Junqueira de Mazarefes, José Gomes da Cunha,
que vivenciou um dos períodos mais negros da história da humanidade: I Guerra Mundial. Era o tempo em que “só
a moral cristã seria capaz de melhorar o coração dos homens”[2].
Se por um lado as gentes da Ribeira
invocavam a Nossa Senhora da Agonia e agradeciam à Nossa Senhora das Boas
Novas, por outro, as gentes e familiares daqueles que partiam, em horas de
aflição, cumpriam promessas, na expectativa das “Boas Novas” que tardavam em
chegar. E era na secular capela, entre oliveiras, sob a invocação da Virgem das
Boas Novas, que os pais, irmãos e familiares de José Gomes da Cunha imploravam
nas suas preces o fim da Guerra e o regresso apoteótico do filho querido, do
qual aqui deixamos umas pequenas notas biográficas, nomeadamente no que toca à
sua participação na primeira Grande Guerra e à sua intervenção cívica no
pós-guerra:
José Gomes da Cunha nasceu na freguesia
de Mazarefes, Viana do Castelo, às seis horas da manhã do dia 6 de Janeiro de
1891 e foi baptizado no dia 1 de Fevereiro do mesmo ano, tendo sido padrinhos
José Gonçalves Barreto, solteiro, ferreiro, e Bernardina Rosa, solteira. Era
filho de José Rodrigues Barbosa da Cunha, lavrador, e de Teresa Rodrigues
Gomes, lavradeira[3].
Casou com Maria Gonçalves Forte, filha de Manuel Afonso Forte Novo e de Ana
Gonçalves, também nascida na freguesia de Mazarefes a 19 de Janeiro de 1885. O
casamento realizou-se na igreja paroquial de S. Nicolau de Mazarefes aos
dezanove dias do mês de Junho de 1915. Deste casamento nasceram dois filhos:
Maria Beatriz Gonçalves da Cunha (1917-2005) e José Gomes da Cunha Júnior[4]
(1918-2002), ambos com descendência. Maria Gonçalves Forte faleceu a 22 de
Abril de 1966, enquanto José Gomes da Cunha haveria de falecer a 13 de Janeiro
de 1976[5].
José Gomes da Cunha, republicano
convicto, participante activo na campanha de Humberto Delgado, assentou praça
em 13 de Julho de 1911 como recrutado, pertencente ao contingente de 1911 a
cargo do distrito de Viana do Castelo, freguesia de Mazarefes, onde lhe coube o
número cinco (5), presente no Regimento de Infantaria n.º 3, sendo incorporado
no 2º batalhão em 13 de Maio de 1912. Os seus sinais característicos eram os
seguintes: Altura – 1,66 mt.; Olhos – castanhos; Nariz – regular; Cabelos –
pretos; Rosto – comprido e cor natural. Antes do serviço militar as
habilitações, ricas para a época, eram as de “saber ler, escrever e contar”.
Extraímos da sua Caderneta Militar: “Pronto
da instrução de recruta e licenciado em 29 de Agosto de 1912, indo a
domiciliar-se na freguesia de Mazarefes, Viana do Castelo. Presente em 16 de
Setembro de 1912. Licenciado em 23 indo domiciliar-se na freguesia de
Mazarefes, concelho de Viana do Castelo. (E.Rp.) Presente em 15 de Outubro de
1913. Licenciado em 21, indo domiciliar-se na freguesia de Mazarefes, concelho
de Viana do Castelo. Passou à Brigada 1p 2 de Caminhos-de-ferro em 30 de
Setembro de 1914, por ordem do comando da 8ª Divisão do Exército. E.Rp.
Presente em 19 de Setembro de 1915. Licenciado em 25 de Setembro de 1915.
Passou ao Batalhão Sapadores de Caminhos-de-ferro em 15 de Março de 1917”.
Por ordem da Secretaria de Guerra (nota
n.º 882 — da Rep. do Regimento de 17 de Fevereiro de 1917), apresentou-se em 26
para efeitos de mobilização, fazendo parte do Corpo do Exército Português: «Seguiram para Lisboa as três companhias do
1.º batalhão de infantaria 3. O embarque começou às 9,30 e terminou às 11
horas, partindo o comboio expedicionário ao meio dia. / Os soldados marcharam
altaneiramente, desde o quartel até à estação, por entre compactas filas de
povo, que d’elles se despedia. / O dever honroso da consolidação do bom nome da
pátria tornava-se-lhes superior a todas as lágrimas. / Os snrs. General da 8.ª
divisão e seu ajudante vieram assistir à partida das forças. / Na estação e
immediações era enorme a concorrência de pessoas, entre as quaes se viam
commandantes e officiaes de artilheria 5 e infanteria 3, representantes do
clero e de todas as demais classes sociaes. / Em todas as passagens de nível
até à ponte metallica e em pontos elevados, era enorme a agglomeração de gente,
que acenava com lenços aos soldados que partiam…»[6]. Um
facto curioso é que, um pouco antes da partida das companhias, foram rezadas
duas missas em S. Domingos “impetrando do Altíssimo o melhor êxito para as
nossas armas”, onde assistiram muitas pessoas, famílias dos militares, oficiais
e praças de infantaria e artilharia. Durante as cerimónias foram distribuídos
terços aos militares e o escapulário de Nossa Senhora do Carmo. No dia 18 de
Abril desse mesmo ano, pelas 6 horas da manhã, no altar da Senhora da
Conceição, na igreja da Ordem Terceira de S. Francisco, rezou-se uma missa,
mandada celebrar por um membro da Banda Regimental de Infantaria 3, “implorando
da Virgem o bom êxito das armas portuguesas”[7].
Tal como os seus companheiros, José
Gomes da Cunha embarcou para França em 26 de Maio de 1917 desde quando, passou
a contar 100% sobre o tempo de serviço. Ouvimo-lo dizer, através de testemunhos
de familiares, que chegou a contar vinte e um feijões por refeição: «A alimentação própria do campo não podia ser
mais pobre nem mais deficiente: uma espécie de “café”, sem açúcar, pela manhã;
ao almoço e ao jantar um prato de sopa aquosa e intragável e ainda menos nutritiva,
um pão negro de quilo por semana, e uns cem gramas de açúcar, também por
semana. A ementa não era complicada e, para a ampliar, aqueles que o podiam
fazer reuniam-se em sociedades de dois ou três para fazer um cozinhado de
reforço…»[8].
Segundo o capitão David Magno, em 9 de Abril de 1918, a “infantaria 3 achava-se
de reserva em Laventie, sob o comando interino do capitão Alberto Augusto do
Vale, tendo por 2.º comandante o capitão José Fernandes Costa. Granadeiro,
tenente, Manoel Joaquim Carvalho Vieira. Metralhador, alferes José Apolinário
da Silva Dias (morto). Observador, alferes Adelino Octavio de Almeida Graça,
que expontaneamente combateu com os ingleses até à tarde de 9, (prisioneiro).
Telegrafista, alferes José Simões. Médicos, tenentes, António de Oliveira
Zuquete (prisioneiro) e Adelino dos Santos Diniz. Provisor, alferes Albino
Amilcar Rodrigues Soure, o qual sob o bombardeamento salvou com coragem e
dedicação tudo quanto se achava e depósito do batalhão”[9].
O Quartel-general da Primeira Divisão do
Corpo Expedicionário Português (C.E.P.) situava-se “em Lastrem e as quatro
brigadas que a compunham estavam posicionadas em Neuve-Chapelle, Ferme du Bois
e Mametz. A Segunda Divisão tinha o comando em La Gorgue e as brigadas em
Fleurbaix e Fauquissart”[10].
Considerado apresentado de regresso ao
país por ter terminado a licença de campanha que lhe foi concedida em França em
28 de Setembro de 1918, deixando de contar 100% no tempo de serviço. De facto,
os portugueses permaneceram em França até ao fim da guerra e, segundo Sérgio
Veludo Coelho, “ganharam duramente o direito de marcharem com os seus Aliados,
através de Paris, no Dia da Vitória. José Gomes da Cunha “passou novamente ao
BSCF (Batalhão Sapadores de Caminhos-de-Ferro) em 16 de Junho de 1919, nos
termos do D. 5803. Licenciado nos termos do art.º 473 da Org. do Exército desde
6 de Dezembro, veio a domiciliar-se em Mazarefes. (S. Ex.) Presente em 6 de
Outubro de 1920. Licenciado em 13 de Dezembro do mesmo ano”[11].
Ao falarmos de José Gomes da Cunha e da
sua participação na I Guerra Mundial, não poderíamos deixar de fazer referência
ao espólio que lhe seria distribuído no dia 25 de Maio de 1912: Um par de botas
(valor 2.780); 1 par de alpucatas (370); dois dolmans (2.000); calça de cotim
(911); duas camisas (828); duas ceroulas (598); uma caderneta (68); dois
barretes (332); duas toalhas novas (120); dois lenços novos (40); calça de
cotim usada (200) e camisola usada (300). Na própria caderneta, a 25 de Agosto
de 1912, faz referência a 12 requisições do Caminho-de-ferro (valor 12) e um
concerto no calçado de 383. Aos vinte e oito dias do mês de Agosto de 1912, o
valor do espólio era de 620. Nas observações pudemos encontrar referência a 5
dias sem direito a vencimento (licença) em Maio e Junho de 1912 e licenciamento
nos termos do art.º 473º da O.E. desde 29 de Agosto de 1912 ao dia 16 de
Setembro do mesmo ano. A arma utilizada era uma SMLE Lee-Enfield MK III de
calibre 7,7 m/m e o uniforme era o modelo do plano de uniformes de 1911-1913 com,
como atrás referimos, dólman, calças e grevas, tudo confeccionado em cotim
cinza azulado.
Outro facto curioso a salientar é que, no
dia 14 de Maio de 1917, por ter faltado à formatura geral, José Gomes da Cunha receberia
uma pena disciplinar (ilegível) no dia 18 do mesmo mês, tendo sido amnistiado
por D. 5787.5-A de 10/05/1919 O.E. nº 16 (17) de 21-06. Todo o tempo do serviço
militar foi, sem dúvida, um mundo constante de aventuras. Apanhou a guerra de
1914-1918 e integrado no Corpo Expedicionário Português, lá andou por terras de
França. Pela sua coragem e dos companheiros, valeu-lhe as condecorações com a
Medalha Comemorativa da França de 1917-1918 O.B. 56-1-1919 e a Medalha Vitória
O.B. 172-4-12, tendo direito ainda a usar o distintivo correspondente à
condecoração da Torre de Espada, concedida ao Batalhão pelo O.E. nº 10 (7ª
série) de 10/07/1920.
A vida de José Gomes da Cunha está
recheada de variadíssimos episódios, marcados, sobretudo, pela entrega aos
outros, como nos dá conta Miguel Gonçalves Forte, seu sobrinho pelo lado da
mulher, presidente da Junta de Freguesia de Mazarefes de 1965 a 1972: «Meditar um pouco sobre a maneira de proceder
de certos homens que se afirmaram no nosso meio como grandes vultos — é o nosso
objectivo.
O grande
público de Mazarefes, ainda não esqueceu o SUR CUNHA — aquele que foi
secretário da junta e amigo de todos que a todos respeitava — não se cansa de
dar apoio moral e material nas ocasiões difíceis. Respeitou a liberdade dos
outros e o seu trabalho ao longo de 50 anos, foi uma verdadeira obra de justiça
social. Foi uma honra para mim a oportunidade de privar bem de perto com um
homem que tratava com fidalguia e acolhia as pessoas com muito entusiasmo.
Dotado
de bons valores, muita dignidade e desejo de servir os outros com altruísmo,
cumpriu uma maravilhosa tarefa — servir os outros e não ser servido.
Nos
tempos conturbados em que vivemos este exemplo de um HOMEM BOM — devia ser
copiado.
Agradeço
a Deus a oportunidade de ter convivido de perto com um homem de boa vontade e
que amava a verdadeira Paz».
A registar ainda que o seu nome, e por
proposta de Miguel Gonçalves Forte, está contemplado na toponímia da freguesia
de Mazarefes.
Depois de uma minuciosa recolha de
documentos – futuramente, com vista à publicação da sua biografia em livro –,
conseguimos saber que só aos três dias do mês de Outubro de 1970, José Gomes da
Cunha abandonaria a Junta de Freguesia por motivos de saúde. Atestado médico
passado numa folha de papel selado de 6$00, diria o seguinte: “Abeldizinho
Pinto da Cunha, licenciado em Medicina e Cirurgia pela Universidade do Porto,
médico oftalmologista, atesta por sua honra que José Gomes da Cunha, viúvo,
aposentado dos Caminhos-de-ferro, de 79 anos de idade, natural da freguesia de
Mazarefes, residente no lugar da Regadia, sofre de baixa de visão biteral, não
podendo continuar a exercer funções na Junta de Freguesia.
E por ser verdade e lhe ser pedido passa
o presente atestado que assina”.
Só o vergar dos anos poderia levar este
homem à rendição!
NOTA DA LINA: Artigo da autoria de meu marido, Porfírio Pereira da Silva, publicado na Revista «A Falar de Viana» de 2014, onde escreve sobre o meu avô paterno. Aqui fica o registo. O seu nome também está contemplado na Toponímia da Freguesia de Mazarefes.
[1] Não se sabe ao certo a data da
sua fundação. Segundo o Pe. Artur Coutinho, uma vaga tradição atesta-nos que a
princípio seria uma pequena capela escondida entre oliveirais como acontecia
naquele tempo como muitas outras. Também era vulgar ouvir-se a pessoas mais
idosas que a princípio era uma capela sob a invocação da Senhora dos Prazeres,
a quem o povo designava somente pelo nome de “Senhora”. Na sua forma actual,
sob a invocação das “Boas Novas”, e segundo o Pe. Matos numa monografia
manuscrita, foi construída em 1805 com muita pedra aproveitada da antiga igreja
paroquial (S. Simão da Junqueira), trazida para ali em carro de bois. A torre
foi construída em 1901, a expensas de um devoto lavrador da terra, Manuel
Augusto Fernandes Barbosa (Casa das Marinheiras). A romaria tem lugar no
domingo da pascoela.
[2] SILVA, Vicente José da – A Guerra de 14: memórias de um combatente,
p. 130.
[3]Assentos de Baptismo 1883 a 1896
da Freguesia de Mazarefes - Cota 52.4.33 existente no Arquivo Distrital de
Viana do Castelo, fls. 62 e 62v.
[4] Manteve o apelido de “Júnior”
até à morte de seu pai. A partir de 1976 passou a ser identificado como José
Gomes da Cunha.
[5] Assento n.º 46, desse mesmo dia.
[6] A Aurora do Lima, 62.º ano, n.º
8995, Terça-feira, 17 de Abril de 1917.
[7] Idem, ibidem.
[8] SILVA, Vicente José da – A Guerra de 14: memórias de um combatente,
p. 96.
[9] MAGNO, David – Livro da Guerra de Portugal na Flandres,
p. 62-63.
[10] COELHO, Sérgio Veludo – O Exército Português na I Guerra Mundial
(1914-1918), p. 24.
[11] In, Caderneta Militar.
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